“Os detalhes” – Sugestão de leitura

Ia Genberg nasceu em Estocolmo, Suécia, em 1967 e começou a sua carreira como jornalista. Publicou o seu romance de estreia em 2012, “Söta fredag” [Doce Sexta-feira]. Seguiram-se outros livros: “Belated Farewell” [Adeus Tardio] (2013) e a coletânea de contos “Small Comfort” [Pequeno conforto] (2018).

“Os detalhes”, de 2022 e agora publicado em Portugal pelas Edições Dom Quixote, é o seu terceiro romance, e foi um bestseller instantâneo na Suécia, com o qual ganhou o Prémio August para melhor livro de ficção, em 2022, e o Prémio Literário Aftonbladet, em 2023. A tradução inglesa de Kira Josefsson foi selecionada para o International Booker Prize 2024.

Este romance, elaborado a partir de quatro memórias não lineares, enquadra-se nesta sociedade pós-moderna, caracterizada pela crescente fragmentação da(s) vida(s) – para usar o conceito de Zygmunt Bauman –, cuja compreensão, ou procura desse entendimento, passa, também, por juntar os pedaços de mosaicos mais ou menos estilhaçados. É até provável que esse seja um dos motivos por que terá agradado e continua a agradar os leitores que, pese embora não encontrem um fio condutor na história, não têm como parar a leitura que se desejaria mais lenta. Pelo menos para atentar aos detalhes de cada uma das quatro personagens que a autora constrói e a partir das quais se poderia, eventualmente, compreender a essência e identidade, também, fragmentada da narradora.

Poderia, na medida em que tal como a questão que se formula no final – “Quem é o sujeito real do retrato, a pessoa que está a ser pintada ou a pessoa que segura o pincel?” –, a dúvida persiste.

E perdurará, possivelmente, uma vez que é por referência ao outro que nos habita, ou nos habitou, que conseguimos construir a nossa identidade, mesmo que de forma precária. A busca identitária é um dos temas latentes deste romance. O convite que a autora nos formula é, no limite, o de procurarmos, nas nossas memórias, os outros que nos fizeram ser o que somos hoje.

O poder da memória e a sua valorização estão inerentes à condição humana. São as histórias e estórias que contamos a nós próprios que nos auxiliam a compreender e, quem sabe, a responder às grandes questões: Quem sou eu? De onde venho? Para onde vou?

Ia Genberg aventura-se a escavar esse artefacto humano, relembrando que a memória é volátil (como é a natureza humana) e que é, profundamente, influenciada pelo ângulo de onde observamos o passado. Neste caso, é a partir de um estado febril, recorrendo a livros oferecidos, trocados e até esquecidos.

A evocação do passado pode, com certeza, espoletar a necessidade de o explicar ou compreender. Não obstante, a pessoa do presente reconhece que as emoções que afloram decorrem de lembranças mais ou menos imperfeitas e fragmentadas. O leito febril em que narradora se situa é, por isso e desde logo, um jogo incerto de verdade e consequência. Assim, sob o efeito da febre e da nostalgia, a narradora, uma mulher de meia-idade, revisita as suas histórias vividas com quatro pessoas/referentes que ficaram impregnadas na sua pele identitária.

Johanna é o primeiro amor da narradora que deixa uma marca indelével na sua vida. A relação com Johanna é marcada pelo gosto divergente de autores, fomentando discussões e reflexões que acabam por gerar uma profunda ligação literária. A troca de livros, em particular, “A trilogia de Nova Iorque”, de Paul Auster, simboliza o vínculo intelectual e emocional que partilhavam. O facto de Johanna ser uma apresentadora famosa torna a memória ainda mais vívida, pela presença constante de uma ausência.

Niki, a excêntrica companheira de casa da narradora durante a faculdade, desapareceu sem deixar rasto, mas as marcas subsistem, tal a sua profundidade. A convivência com Niki é retratada como uma caça interminável a objetos perdidos, simbolizando a busca por algo mais profundo na vida. A sua amizade forte, mas frágil, é ilustrada pela lembrança de um exemplar desgastado de “A Filha do Rei do Pântano” de Birgitta Trotzig, que restou como um vestígio da relação desfeita.

Alejandro, um dançarino chileno-alemão, é descrito como uma tempestade que varreu a vida da narradora com um caso de amor ardente e breve. A relação com Alejandro é caracterizada por uma gravidade emocional que assusta e fascina a narradora. Embora de curta duração, a força das memórias das experiências vividas continua a moldar a perspetiva da narradora sobre o amor e as relações íntimas.

Birgitte, a mãe da narradora, é uma figura complexa e evasiva, moldada por traumas de infância. Descrita como uma mulher à deriva, Birgitte deu à luz a narradora durante um surto psicótico, influenciando a abordagem cautelosa da narradora no que se refere à confiança e à intimidade. A narrativa de Birgitte é, talvez, a mais pungente, pelo modo como explora a dinâmica mãe-filha pela lente do perdão e compreensão tardia.

A estrutura fragmentada do livro reflete, assim, a natureza complexa e dispersa da memória, resgatando momentos que se transformam numa prosa lírica e precisa, ao mesmo tempo introspetiva e reflexiva.

“Os Detalhes” é um romance que requer uma leitura atenta e paciente, oferecendo aos leitores uma exploração rica e complexa das emoções humanas e das interações prosaicas da vida quotidiana. Mosaicos feitos histórias para dar substância a cada uma das vidas da nossa existência.

“Vivemos muitas vidas ao longo da nossa vida – vidas mais breves, vidas secundárias, vidas «mais pequenas» com pessoas que aparecem e desaparecem, com amigos que nunca mais revemos, com filhos que crescem e saem de casa – e nunca sei qual das vidas minhas deve, supostamente, servir de moldura” (p. 127).

Esta recensão foi publicada no Jornal Página Um.

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