Nascida em 1976 em Osaka, no Japão, Mieko Kawakami é a autora do romance, “Seios e óvulos”, publicado em Portugal pela Casa das Letras. Apesar de ser o primeiro livro traduzido para português, Mieko Kawakami estreou-se na literatura como poetisa em 2006 e publicou a sua primeira novela, “My Ego, My Teeth and the World”, em 2007.
A autora já recebeu diversos prémios literários no Japão, incluindo o Prémio Akutagawa, o Prémio Tanizaki e o Prémio Murasaki Shikibu. Mieko Kawakami também fez parte da lista dos autores seleccionados para o International Booker Prize em 2022, com o livro “Heaven” (2021).
“Breasts and egs” tornou-se um grande êxito internacional, sendo considerado um livro notável, pelo New York Times, e um dos 10 melhores livros de 2020, pela revista TIME.
O título do livro em inglês e a respetiva tradução em português remetem directamente o/a leitor/a para os temas das duas partes do livro, que conta a história de três mulheres japonesas: Natsu, a narradora, é uma jovem escritora de 30 anos que vive em Tóquio; Makiko, a sua irmã mais velha, é anfitriã num bar de Osaka e a sua filha de 12 anos, Midoriko.
Na primeira parte do livro, mãe e filha fazem uma visita a Natsu a Tóquio, com o objectivo de Makiko fazer uma operação de implantes mamários a um preço acessível. Porquê aumentar o tamanho das mamas? O ponto de partida para uma descrição tão realista como peculiar dos mamilos de Makiko. O corpo feminino é um dos protagonistas do livro. A sua transformação e a sua experienciação, narrada por intermédio do diário da adolescente Midoriko, contribui para o diálogo interior da narradora sobre o papel da mulher na sociedade patriarcal japonesa.
Mais do que as questões de género associadas às identidades sociais que tendem a pautar as discussões contemporâneas, o que está em causa é o poder que a mulher tem para decidir sobre o seu corpo e os papéis atribuídos às mulheres, ainda de submissão, em muitos contextos, nomeadamente da pobreza, no qual as irmãs Makiko e Natsu cresceram em Osaka e do qual lutaram para sair. Sem êxito – o que percebemos na primeira parte do livro. Os ovos (de aves) parecem ser a principal fonte proteica para estas mulheres e são uma metáfora para o que se segue.
Na segunda parte do livro, dez anos após aquela visita, Natsu continua a escrever, mas sem grande convicção – mais por falta de concentração e foco. A sua atenção está centrada, principalmente, em como ter um filho sem o acto sexual. O sexo é algo que abomina.
A sua pesquisa pela procriação (não muito clinicamente) assistida – tema tabu no Japão – transporta-nos para outras questões éticas relacionadas com a parentalidade, nomeadamente sobre a necessidade que os filhos, com pai desconhecido, têm em saber quem é o seu progenitor biológico.
Estas e outras questões são as angústias vívidas da narradora, que se refugia, numa primeira parte, na descoberta da identidade feminina manifestada no diário da sobrinha adolescente. O salto para a segunda parte do livro é um salto de tal ordem que o contacto com a irmã e a sobrinha são apenas isso: telefonemas e mensagens.
É natural que esta obra seja cativante, na medida em que esta narrativa de autoficção realista permite que o/a leitor/a se identifique com os dilemas das personagens. A perspectiva feminina sobre o seu corpo não costuma ser descrita de forma tão natural como crua, levando a leitora a questionar-se sobre a sua própria feminilidade e qual a origem do seu auto-conceito.
Os media muito têm contribuído para essa hétero-construção, muito raramente consentânea com o modo como cada mulher observa e sente o seu próprio corpo. Além dos padrões e falsas expectativas disseminados pelos media, também os papéis da mulher, nomeadamente o da maternidade perpassam as conversas e o quotidiano das personagens, quase todas mulheres.
Os ditames e normas sócio-culturais tendem a formular uma ideia de maternidade que ultrapassa a mulher, de tal modo que muitas mulheres se sentem menos mulheres por não serem mães. Isto, por um lado. Por outro, a reflexão interior da narradora sobre a ideia de maternidade ainda associada à paternidade.
Este ‘ainda’ é, por assim, dizer o busílis de Natsu. Este ‘ainda’ é um tema do antropocentrismo. Sem dúvida de que muitas outras ‘dificuldades’ estão a ser estudadas com o objectivo de nós, humanos, ultrapassarmos esse ‘empecilho’ que é o corpo, do qual somos proprietários e em relação ao qual, cada vez menos, saberemos o que fazer.
Desta feita, o livro é cativante para quem aprecia as questões de género e do papel da mulher nas sociedades contemporâneas.
O realismo das descrições é, igualmente, envolvente, na medida em que, ao contrário de outros autores japoneses, como Haruki Murakami, temos acesso à cultura e modos de vida deste país tão fascinante como longínquo.
Esta recensão foi publicada no Jornal Página1.