Jan Morris nasceu em 1926, no Reino Unido, e morreu em Novembro de 2020, aos 94 anos. Uma vida longa, com muitas peripécias e viagens, tendo publicado sob o nome de James Morris até à década de 1970, época em que concluiu a transição para o sexo feminino (1972).
O seu livro autobiográfico, “Conundrum – história da minha mudança de sexo”, também publicado pela Tinta da China, é um relato pungente sobre essa mesma experiência. Além de ser uma referência para a comunidade LGBTQI+, esta autobiografia é considerada, pelo The Times, como um dos “100 livros fundamentais do nosso tempo”.
Antes disso, a sua experiência no exército inglês, no qual entrou aos 17 anos, permitiu-lhe tomar contacto com outros países no contexto do pós-II Grande Guerra e do declínio do império britânico. Estas viagens, juntamente com o curso de História em Oxford, contribuíram não apenas para enriquecer a sua experiência e aumentar a sua matéria de escrita, mas também e, sobretudo, para expandir a sua mundividência – algo que se espelha na sua obra. A trilogia composta por “Heaven’s Command”, “Pax Britannica” e Farewell The Trumpets, que retrata a ascensão e queda do Império Britânico, é disso exemplo.
Em 2008, o The Times incluiu Jan Morris entre os 15 maiores escritores britânicos do pós-guerra. Em 2018, a autora foi distinguida com o Prémio Edward Stanford, pelo seu contributo para a literatura de viagens – a autora publicou ensaios sobre inúmeras cidades, entre as quais Oxford, Veneza, Trieste, Hong Kong e Sidney.
Além deste género, a escritora é autora de livros de história e ensaios, dois romances e uma coletânea de contos.
Este “Alegorizações” é um livro póstumo, no qual Jan Morris escreve sem pretensões e sem quaisquer limitações, sem necessidade de provar o que quer que seja – com os riscos que daí possam advir. Claro que, para a autora, não havia nenhum depois da sua morte, mas para quem conhece a sua obra, este pode ser um livro aquém das expectativas. Sugere-se, por isso, que não se abram as páginas em busca da obra-prima.
É um livro que inclui diversos relatos de viagens, pessoas e lugares memoráveis e episódios mais ou menos caricatos, mais ou menos engraçados, marcados pelo subtil humor britânico. Um conjunto de ensaios escritos a partir das suas recordações enquanto jornalista, cuja ideia subjacente à redação dos diversos textos é a de lembrar que nem tudo o que parece é, e que a compreensão da realidade implica ir além do que está, literalmente, escrito e à vista. Como na alegoria da caverna de Platão, em que as sombras e os ecos são um reflexo distorcido da realidade.
Uma das alegorias explicitamente consideradas pela autora diz respeito ao texto, “O montanhista”. Jan Morris fez a reportagem da expedição de Edmund Hillary e Tenzing Norgayo ao Evereste, em 1953, acompanhando aqueles que terão alcançado, pela primeira vez, o cume da montanha mais alta do mundo. O texto é sobre o nepalês Tenzing Norgayo, e de como este é um símbolo e “personificação da própria vida: ágil, célebre, sempre cheio de entusiasmo e incansável” (p. 187). A lenda sherpa encarna, igualmente, a inevitável força da natureza, nomeadamente o declínio das capacidades físicas. Para Tenzing, a força e representação máxima da sua singularidade. Sui generis, assim o descreviam no ocidente, na época dos descobrimentos verticais, passe a expressão.
O envelhecimento é um dos temas que vai perpassando o livro. O que talvez seja natural, dadas as circunstâncias da sua publicação e da percepção de uma morte mais próxima que longínqua. Mais em retrospectiva, do que em sensação de perda. Como se envelhecer fosse uma arte, em que a aceitação é a regra básica para uma vida mais leve e livre.
Também a bondade faz parte desta criação artística. Para a autora, a bondade é, aliás, um conceito sem qualquer alegoria, é “a única abstracção que pode orientar a nossa conduta enquanto aguardamos a revelação final (se houver alguma)” (p. 216). Para Jan Morris, “a bondade tem latente uma grande arma conceptual que está só à espera de ser usada: é mais grandiosa do que a simples religião” (p. 217), sendo facilmente compreendida por qualquer pessoa, independentemente da sua condição.
O ridículo, como matéria de reflexão, é outro dos atractivos do livro. O texto, “Sonhar sonhos?”, é o ponto de partida para uma viagem meditativa sobre o acto de meter e tirar o dedo do nariz. As indagações da autora conduzem-na a reflectir sobre a (in)discrição do acto: “Desde então que tenho de lhe dar uma mãozinha pelo processo pouco bonito de lá enfiar um dedo. É uma coisa tão feia de se fazer não é, mas acham que toda a gente o faz?” O mesmo tipo de questão é formulado pela autora em relação a “Ulisses”, de James Joyce:
“Será que todos eles leram o livro de uma ponta à outra? Duvido muito. A maioria das pessoas que afirmam tê-lo feito tornam-se evasivas quando pressionadas…” (p. 37).
E o/a leitor/a, estará pronto para sair da caverna e viajar com Jan Morris?
Esta recensão foi publicada no Jornal Página 1.