Na margem do Rio Ganges – Fragmentos de viagens

O último pequeno-almoço em Varanasi foi na companhia de Askhay. Estávamos os dois de partida do HosteLavie. O jovem blogger escreve sobre os conteúdos e respectivos modos de divulgação nos media. Askhay regressaria nesse dia a Mumbai, a sua terra natal, e iniciava a sua primeira refeição: uma omelete, uma banana, duas torradas, acompanhadas de masala chai, o típico chá indiano. Juntei-me a ele. No dia anterior fora ele a tomar a iniciativa. Estava curiosa. Askhay iria ao Templo Kashi Vishwanath. Eu tentara duas vezes, mas as filas intermináveis, com os pés descalços, detiveram-me.

Naqueles dias, vésperas do Holi Festival, a afluência era crescente. Também Askhay desistiu; no dia dedicado a Shiva, os devotos eram ainda mais. Por conseguinte, o jovem indiano ‘terá’ de voltar à cidade sagrada, para então se banhar no rio Ganges e, assim, alcançar a libertação. A redenção dos seus ‘pecados’ e ‘mau karma’ será possível, apenas, com obtenção da bênção de Shiva, no Templo Dourado – a outra denominação para a casa do deus da destruição: Shiva, ele próprio.


Indestrutível – o significado do seu nome, Askhay – ainda não se sente preparado para atingir o estado superior de purificação, tão-pouco para assistir e participar no festival das cores, a começar dois dias depois. O festival comemora a vitória do bem sobre o mal, ou seja, a vitória de Vishnu sobre Holika.

 Ao final dessa última manhã, pelas ruas e ruelas da cidade mais importante do hinduísmo, já se sentiam as cores da festa sagrada, não apenas com as crianças e jovens que surgiam pintalgados de roxo, amarelo, verde, vermelho ou laranja, mas também na afluência às cerimónias bi-diárias, na margem citadina, ao longo dos mais de oitenta ghats.

No primeiro, o Assi Ghat, as práticas têm início às cinco da manhã, com concertos de música clássica, seguidos de ioga e/ou meditação. Ao longo da margem, em especial nos ghats mais importantes e de maior dimensão, como o Dasashwamedh, desde o amanhecer que chegam os devotos para obter a bênção e orientação dos bramas ou gurus, ao mesmo tempo que contribuem com os seus donativos para a vida ascética dos mediadores dos deuses.

Um negócio, diz Atul o guia do hostel que, pertencendo à casta dos bramas, considera que negócio por negócio, prefere trabalhar e ganhar o seu próprio sustento. Também o guia assegura que os banhos no rio são um modo de encontrar um equilíbrio entre as acções do passado e a salvação no futuro. Já no que concerne ao significado de outras crenças, Atul é mais céptico.


Diz Atul que a migração das almas aquando da cremação é um mito, ainda que subsistam práticas nesse sentido. Isto é, há quem acredite que se o corpo de uma pessoa recentemente morta for cremado na presença de crianças muito jovens ou mulheres grávidas, há possibilidade de ocorrer a transmigração da sua alma para um novo receptor. Atul negou convictamente, acrescentando que as mulheres estão proibidas de assistir à incineração dos corpos, para não macularem a viagem do morto, uma vez que as lágrimas femininas são impuras.

A cremação acontece em dois ghats, sendo o Manikarnika o maior e principal, onde diariamente se queimam cerca de 250 corpos. Este é, aliás, um dos ‘pontos de interesse’ durante os passeios de barco que diariamente navegam cheios de turistas e afins ao nascer do sol. Apesar de se alertar para o facto de ser inconveniente fotografar, os cliques dos engenhos concorrem com o crepitar da carne a assar. Não é raro que alguns dos milhares de cães doentes e famintos da cidade aproveitem a oportunidade de obter carne, já que essa não é fácil encontrar entre os restos de comida dos hindus, na sua maioria vegetarianos.

Ao fim da tarde, o rio volta a vibrar.  As cerimónias de agradecimento ao Rio Ganges e à Deusa Ganga, aquela que terá descido do céu para viver no rio, ocorrem todos os dias a partir das seis da tarde. Os monges dançam lenta e meticulosamente com as velas e sinos. Enquanto os ghats são preparados para o ritual, os crentes têm mais uma ocasião para realizar as suas oferendas aos deuses e ao rio, como sejam flores, arroz e doces.

A natureza sagrada das águas, onde o bem destruiu o mal, é o motivo pelo qual a maioria dos hindus anseia ir, pelo menos uma vez na vida, a Varanasi e banhar-se no rio para a sua purificação.

Uma prática arrojada para a maioria dos estrangeiros, mas são alguns os que se rendem à atmosfera e mergulham nas águas imundamente sagradas. Impossível saber se estas pessoas terão ido primeiro ao Templo Dourado, mas Askhay, o meu companheiro de pequeno-almoço, garante que só desse modo a libertação acontece.


Este texto foi publicado aqui, em fevereiro de 2018, onde escrevia sem o AO de 1990.

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