Nascido em 1949, na cidade de Quioto, Haruki Murakami já esteve várias vezes na lista de putativos vencedores do Prémio Nobel da Literatura. Mas, como alguns ironicamente referem, o japonês tem sido estranhamente esquecido. Talvez por isso escreva cada vez mais sobre o que bem entender e sobre o que mais gosta: música… só música.
Durante o curso em estudos teatrais, em Tóquio, Haruki Murakami abriu um bar de música jazz, The Cat, que manteve durante cerca de sete anos. A música jazz é, aliás, um cenário musical recorrente na sua obra, sendo, inclusivamente, uma forma de dar ritmo aos seus romances – uma das características mais prementes da sua obra, ainda que nem sempre visível na tradução portuguesa – provavelmente por ser efectuada indirectamente, a partir do inglês.
A música clássica, tema da obra agora em análise, também já se sentira de forma implícita em diversos romances, nomeadamente nos dois volumes de A morte do comendador.
Das viagens surrealistas, pelas quais nos deixamos enlevar em quase todos os seus romances, Haruki Murakami viajou, desta vez, pelo mundo da música clássica e acompanhado pelo famoso maestro Seiji Ozawa, nascido em 1935.
A paragem compulsiva do maestro, provocada pela descoberta e recuperação de um cancro, em 2009, permitiu uma série de encontros entre estes dois homens excepcionais, dos quais resultaria um conjunto de seis conversas, agora editado, em Portugal, pela Casa das Letras.
Para os leitores aficcionados por Haruki Murakami, este livro não será propriamente uma surpresa, uma vez que já estamos habituados a ter a música como personagem-sombra ou como elemento primordial da cena – de tal modo, que somos convidados a escutar a música referenciada. Como afirmou algures o autor, ao escutar uma determinada música, o leitor é impelido a ler com determinado ritmo.
Este Música, só música não é, assim, apenas para os amantes do género ficcional surrealista, mas sobretudo para os melómanos, em particular para os amantes da música clássica que sintam curiosidade pelos meandros das orquestras e respectivos maestros.
Director musical da Orquestra Sinfónica de Boston durante quase 30 anos, Seiji Ozawa assumiu o mesmo cargo nas Orquestras de Chicago e de Toronto e na Ópera Estatal de Viena – a qual dirigiu até 2010. Um maestro genial, cuja origem nipónica terá desconcertado muitos públicos, entre os quais os de Itália, onde terá sido apupado, aquando da direcção da ópera Tosca, de Puccini.
Este é um de muitos episódios descritos e partilhados pelo maestro, que, certamente, encantará os curiosos e apaixonados pela música clássica. Tanto mais que a mencionada intertextualidade musical que perpassa toda a obra de Murakami se torna, aqui, ainda mais óbvia.
Ao convidar o maestro a escutar os concertos para piano de Beethoven, a Sinfonia Fantástica de Berlioz, entre várias outras sinfonias, momentos e interlúdios, para iniciar e guiar as conversas, Haruki Murakami também está a incitar o leitor a entrar na conversa de forma activa.
A história das interpretações de Gustav Mahler é um dos exemplos e se, em simultâneo, escutarmos os 3º e 4º movimentos da 1ª sinfonia de Mahler – a grande paixão do maestro –, teremos a sensação de estarmos na mesma sala que os interlocutores.
Além de Seiji Ozawa, ficamos a conhecer outros maestros, em particular Leonard Bernstein, de quem Ozawa foi assistente durante duas temporadas; e o seu mentor, Saitō Kinen, em homenagem a quem criou uma Fundação e respectiva orquestra, organizando um festival anual em Matsumoto, em honra do mesmo maestro japonês.
Num dos encontros, Seiji Ozawa admite que as conversas (guiadas – uma espécie de entrevista aberta) o terão ajudado a organizar as suas memórias, e a perceber o quão terá mudado e mesmo evoluído ao longo do tempo.
Este é, na realidade, um dos grandes feitos das entrevistas para a construção de “histórias de vida”, a partir das quais não só os leitores ganham, e muito, mas também os próprios entrevistados, que têm oportunidade de se sentar numa plateia fictícia e olhar para o palco que foi a sua vida. Neste caso, isto não é sequer uma metáfora. Efectivamente, foi o que sucedeu, graças à preparação magistral de Murakami e à sua erudição musical.
Uma curiosidade: os parágrafos estão alinhados à esquerda, para gerar uma leitura mais agradável. Se é verdade que essa estratégia ajuda, também o é o teor do livro, cujo prefácio de Martim Sousa Tavares nos acirra ainda mais a vontade de ler, conhecer, aprender e escutar música – a personagem principal.
Por isso, sim: Música, só música para nos encantar.