Se tivesse de dar uma nota a este livro, ficaria a perder pelo seu final. Além de nos deixar a ‘salivar’, deixa mesmo a sensação de que falta alguma coisa – portanto, mais “spoiler” que isto não é possível. Com certeza que os leitores compreenderão o referido, sendo, igualmente, certo que, só por isso, a curiosidade já estará estimulada.
O título é, desde logo, atractivo para os leitores interessados sobre a censura que se realiza aos conteúdos das redes sociais. No caso deste curto romance, a rede social é a Hexa – mas poderia muito bem ser o Facebook, se se tratasse da realidade. A autora ter-se-á baseado na sua investigação sobre as condições de trabalho de moderadores de conteúdos ao nível mundial, recorrendo a estudos, documentários e outras fontes – muitas delas referidas no final do livro.
Sendo uma obra de ficção, a semelhança com a realidade é de tal modo profunda que a verosimilhança nos deixa estupefactos. Desengane-se, porém, quem pense que encontrará relatos minuciosos de violência das fotografias ou dos vídeos mencionados ao longo da história. Ainda que a visualização de todas essas imagens seja uma das causas dos distúrbios dos trabalhadores, o seu eventual e consequente desequilíbrio mental está associado às condições em que têm de realizar as suas tarefas de moderação dos conteúdos – e este é o âmago da história.
Este romance psicológico narra a história, na primeira pessoa, de Kayleigh, uma jovem que trabalhava como moderadora de conteúdos de uma rede social, Hexa. É, portanto, uma versão pessoal, em modo confessional – uma carta ao seu advogado, senhor Stitic –, sobre uma série de acontecimentos vivenciados e interpretados pela personagem, cuja lucidez é questionável, dadas as circunstâncias e pressão laboral em que vive.
O seu trabalho, aprovação ou não de conteúdos, decorre da questão diária:
“Isto pode ficar na plataforma? E de contrário: Porque não? Essa última pergunta era a mais difícil. Um texto do tipo «Todos os muçulmanos são terroristas» não está autorizado pela plataforma, porque os muçulmanos são uma CP, uma ‘categoria protegida’, tal como as mulheres, os homossexuais e, acredite ou não, senhor Stitic, os heterossexuais. Por outro lado, a frase «Todos os terroristas são muçulmanos» já está autorizada, porque os terroristas não são uma CP e, além disso, ‘muçulmano’ não é um termo insultuoso. (…) Se selecionássemos a categoria errada, a avaliação era considerada incorreta, mesmo que houvesse razões para esse post ser removido” (pp. 18-19).
É a sua paixão e obsessão por uma colega que desencadeia o gatilho para o colapso que não é exclusivo da jovem. Pelo contrário, a narrativa que nos envolve de início ao fim é só mais uma evidência da crise psicológica generalizada (também pelas muitas situações de exploração e stress laboral) que se vive atualmente.
Lido de uma assentada, este romance é uma visão muito próxima da realidade – assustadora – que, além de nos assoberbar, nos distorce ao ponto de deixarmos de questionar quem somos, para começarmos a perguntar o que podemos e devemos esconder e censurar.
Hanna Bervoets é uma escritora e jornalista neerlandesa. Nascida em 1984, em Amsterdão, estudou Jornalismo, tendo sido colunista do jornal De Volkskrant (2009-2014), onde escrevia sobre os perigos do digital.
Em 2020, recebeu o prestigiado Prémio Frans Kellendonk pelo conjunto da sua obra, que inclui os títulos “Of Hoe Waarom”, “Lieve Céline” (adaptado ao cinema), “Alles Wat Er Was” (2013) e “Ivanov” (2016) – que terá recebido elogios pela exploração inovadora de temas como a inteligência artificial.
Esta recensão foi publicada no Jornal Página1.