Zuckerman libertado, original de 1981 e, agora, publicado em Portugal pela editora Publicações Dom Quixote, é uma obra do reconhecido autor Philip Roth (de quem falámos aqui, recentemente). Este é o segundo romance da série protagonizada pelo escritor Nathan Zuckerman, seguindo a sua jornada em busca pela liberdade pessoal e criativa (“O escritor fantasma” e “A lição de Anatomia”, juntamente com “Zuckerman Acorrentado” completam a série).
Narrado na terceira pessoa, a história passa-se em 1969, um ano depois de Martin Luther King e Robert Kennedy terem sido assassinados, com os protestos contra o Vietname como pano de fundo. É o ano em que Nathan Zuckerman está a aprender a lidar com a fama depois da publicação do seu romance “Carnovsky”.
A sociedade e os media perseguem o protagonista com a tentativa constante de o vincular à sua obra, altamente controversa. Quem leu “O complexo de Portnoy”, do mesmo autor, encontrará muitas semelhanças em relação ao enredo, às consequências e às polémicas geradas pelo efeito espelho relativamente às personagens criadas em ambas as referências.
Esse é um dos grandes temas do livro. O pesadelo vivido por Zuckerman pelo facto de muitos leitores, incluindo a sua família e conhecidos, confundirem a ficção com a realidade. Ou será que é Nathan (e eventualmente Philip Roth) que, ao usar tanta matéria-prima da realidade quase em bruto, conduz os leitores a, facilmente, identificarem o escritor/autor com a personagem criada?
Com Nathan Zuckerman, Roth explora, de forma exímia, a dificuldade em separar a vida do autor das suas criações literárias. À semelhança de Philip Roth, Zuckerman é constantemente questionado sobre o quão autobiográficas são as suas obras. “Os factos – autobiografia de um escritor” é disso ilustrativo.
“A ficção não é autobiografia, mas toda a ficção, estou convencido, mergulha as suas raízes na autobiografia” (pág. 160): excerto da recensão ao livro “Carnovsky”, escrita por Alvin Pepler, um admirador que persegue o escritor protagonista. Esta personagem cómica é baseada num concorrente histórico, também judeu, dos programas de perguntas e respostas da televisão dos anos 1950.
Zuckerman também lida com problemas pessoais, como conflitos amorosos, questões de identidade e dilemas éticos. Pode, por isso, ser um livro denso, dado o mergulho profundo na mente da personagem principal – provavelmente os dilemas existenciais por que o autor terá passado aquando da publicação de “O complexo de Portnoy”.
Neste fascinante e provocativo Zuckerman libertado, Philip Roth faz jus ao propósito do pós-modernismo. É quase certo que o leitor se sentirá sacudido, quase agredido, uma vez que será ‘obrigado’ a reflectir, juntamente com a personagem, sobre a função da literatura.
O autor usa a própria personagem para justificar aquele intento, recorrendo a Frank Kafka, que terá escrito: “Creio que só devíamos ler aqueles livros que nos mordem e nos ferram. Se um livro que estamos a ler não nos desperta com uma pancada na cabeça, para quê lê-lo?” (pág. 212).
A presença de Kafka na obra também poderá ser um indício da vontade que Philip Roth tem em explorar a natureza alienante da fama e do sucesso, bem como as consequências psicológicas e emocionais de se ser uma figura pública, um dos temas centrais do livro.
A narrativa expõe, igualmente, a censura e os limites da liberdade de expressão, discutindo a responsabilidade de um escritor perante o seu público. De tal modo, que o romance conflui para o momento em que o irmão de Nathan o confronta com a sua (ir)responsabilidade de “trazer tudo a público”, sem qualquer comedimento (pág. 229).
Numa era em que as distopias parecem tornar-se realidade, ler a obra deste escritor de origem judaica pode ser uma forma de nos alienarmos deliberadamente, nem que seja por algumas horas, de um mundo confuso e caótico.
Esta recensão foi publicada no Jornal Página1.