Como recentemente aqui o descrevemos, Javier Marías, desaparecido no final de 2022, é considerado um dos maiores escritores contemporâneos.
Nascido em Madrid (1951), o autor espanhol ganhou uma série de prémios e distinções pela sua vasta obra, sendo disso exemplo, o Prémio Giuseppe Tomasi di Lampedusa e Prémio Qué Leer, com Assim começa o mal e Os enamoramentos; Prémio da Crítica, Prix l’Oeil et la Letre e IMPAC Dublin Literary Award, com Coração tão branco; Prémio Fastenrath, Rómulo Gallegos e Prix Fémina Étranger, com Amanhã na batalha pensa em mim. Todos publicados, em Portugal, pela Alfaguara.
Membro da Real Academia Espanhola e da Royal Society of Literature, desde 2011, Javier Marías, além de escritor, foi professor na Universidade de Oxford e na Universidade Complutense de Madrid, e tradutor, tendo obtido o Prémio Nacional de Tradução em Espanha (1979), com a sua tradução de Tristram Shandy.
O homem sentimental, agora reeditado, é uma viagem onírica, a descrição de um sonho, escrita de uma assentada. Um sonho sobre eventos que decorreram quatro anos antes desta redacção e cuja verosimilhança causa, no leitor, a dúvida sobre o que é sonho e o que realmente aconteceu.
O narrador descreve, então, o sonho e/ou os acontecimentos ocorridos como se estivesse numa poltrona a assistir a um filme a preto a branco, eventualmente mudo, tendo, por isso, necessidade de incluir as falas. Um narrador autodiegético e omnisciente, narrando na primeira pessoa e como participante, que tem o domínio de todos os acontecimentos. Motivo que nos conduz à dúvida.
Entre o sonho e a realidade de anos atrás, fica uma descrição minuciosa e profunda do que a personagem percebe, só então, ter vivido e, sobretudo, sentido. “Agora que vos conto este sonho e história, creio ter-me abstido de pensar durante quatro anos” (p. 46).
A solidão é o primeiro e mais forte sentimento, o que um cantor lírico em ascensão sente, só comparável à de um caixeiro-viajante. Alguém que vive de cidade em cidade, tendo na mala de viagem a sua única e permanente companhia, sem criar raízes. O que talvez ajude a compreender o registo onírico. Registo que acontece como um porto seguro, como se o narrador quisesse agarrar esse reduto por intermédio da sua escrita.
É assim mesmo que se inicia esta trama psicológica, com as semelhanças entre um e outro viajante. É de tal modo pesada que, perpassando as diversas personagens da história onírica, a solidão é, ela mesma, uma figura narrativa.
É a mesma que permite a contemplação e observação das vidas dos outros, por parte do cantor lírico, León de Nápoles.
A descrição do sonho começa com uma viagem de comboio, durante a qual o narrador tem oportunidade de observar as personagens que o acompanham no sonho, aquelas que integram o triângulo amoroso, Natalia Manur, o seu marido banqueiro, Hieronimo Manur, e ainda o assistente pessoal do casal, Dato. Mas esta informação só a obteria posteriormente.
Durante a viagem, León detém-se nas mãos das três pessoas. A partir da sua observação, imagina e cria a história de cada uma das personagens que viria a conhecer num hotel de Madrid, cidade onde se desenrola o antes e o depois de triângulo amoroso.
Madrid, onde o cantor tem uma série de ensaios para a estreia de Otello, de Verdi, e com os quais somos confrontados com a ascensão e a queda de outro cantor lírico, numa clara alusão ao envelhecimento e à angústia que a perda de protagonismo pode conduzir.
Ao descrever os acontecimentos passados com outro cantor, o narrador acaba por visualizar a sua própria decadência num futuro que espera longínquo. Não é este o resultado da morte e envelhecimento dos outros sobre nós? O de nos lembrar que também nós somos finitos…
O sonho em relato também engloba a história de um outro amor passado, que integrava outros vértices de um duplo triângulo amoroso, só na aparência, mais complexo que o usual.
Como afirma no primeiro epílogo, o escritor espanhol Juan Benet, não há nada de novo no tema, apenas e tanto, a profundidade do sentimento de um homem que paira entre o sonho e a realidade (para o leitor, também onírica).
No segundo epílogo do livro, do próprio autor, Javier Marías, o leitor obtém mais elementos para compreender o desfecho quase inusitado que poderá, até, provocar uma espécie de ‘água na boca’, um à espera do resto. Só que não.
A provocação sublime do autor é esta mesma, a de nos transportar ao longo de uma viagem contada por intermédio de um sonho refletido e reflexivo. De tal modo que, como na plateia, observamos o enredo sem nunca alcançar o verdadeiro acontecimento do triângulo amoroso. A imaginação será o nosso apoio e co-participação… se quisermos.
Esta recensão foi publicada no Jornal Página 1.