O ensaio clínico, A psicologia das massas, finalmente publicado em português europeu pela Alma dos Livros, é um original de 1895. É, por isso, de ressalvar que, à época, os modos de escrita da Ciência eram distintos, em particular, tratando-se de um ensaio. Um tipo de publicação que tendencialmente se realiza sem a revisão dos pares.
Não significa que esta avaliação não se concretize ou não tenha sido vivenciada pelo próprio autor. Tanto mais que Gustave Le Bon (1841-1931) terá sido amplamente ignorado e até difamado por parte da academia francesa por causa da sua visão política.
Este repúdio não impediu que tivesse obtido, em 1879, o Prémio Godard da Academia Francesa de Ciências, nem que as suas obras influenciassem uma série de figuras públicas, como por exemplo os políticos Roosevelt e Hitler e autores como Freud e Ortega y Gasset. Em relação aos primeiros, a defesa da existência de uma raça superior, a ariana, terá sido “música para os ouvidos” de Hitler.
Quanto à influência sobre Sigmund Freud, o determinismo social, que Gustave Le Bon resgatou de Charles Darwin, foi um forte motivo para que Freud escrevesse um livro sobre a obra que aqui apreciamos: A psicologia das massas e a análise do eu.
Mas a sua influência foi muito mais além, dado ser considerado um dos fundadores da Psicologia Social, para a qual esta A psicologia das massas muito terá contribuído – ainda hoje, esta obra é uma referência para a compreensão do funcionamento e poder dos grupos e multidões.
Gustave Le Bon, além de apaixonado pela escrita, foi uma pessoa muito observadora e curiosa, características imprescindíveis aos cientistas. No seu caso, o interesse era vasto, e incluía a Psicologia, Medicina, Física, Sociologia e Antropologia. As viagens com fim investigativo muito colaboraram para aumentar a sua mundividência e compreensão dos modos de organização dos diferentes povos.
A sua experiência como médico oficial do Exército francês, aquando da guerra Franco-Prussiana, também lhe proporcionou a oportunidade de observar o comportamento dos militares sob condições de forte stress e sofrimento. Valeu-lhe a nomeação de Cavaleiro da Legião de Honra.
Outras vivências terão enriquecido o seu repertório investigativo, como por exemplo, a Comuna de Paris, durante a qual não lhe faltaram situações que, posteriormente, usaria para a redacção desta obra, sobre o funcionamento psicológico das multidões.
Neste livro, o autor começa por descrever as principais características das massas, destacando a “impulsividade, irritabilidade, incapacidade de raciocinar, ausência de julgamento e espírito crítico, exagero de sentimentos”. Caracteres especiais que concorreram para que Le Bon teorizasse a “Lei Psicológica da Unidade Mental das Massas”.
É provável que o uso de certos termos e conceitos, como o de raça ariana, incomode os leitores contemporâneos, mas serviu, como referido, para a posterior reivindicação e pseudoinvestigações do Instituto dirigido Heinrich Himmler, como aliás, já aqui se recenseou.
A linguagem colide, igualmente, com o que hoje temos como politicamente correcto. Para demonstrar que a composição de um grupo ou multidão pouco ou nada influencia as decisões por si tomadas, seja o grupo constituído por ilustres intelectuais ou por básicos operários, Le Bon afirma que “as decisões de interesse geral tomadas por uma assembleia de pessoas ilustres, mas de diferentes especialidades, não são sensivelmente superiores às que uma reunião de imbecis tomaria. Só apresentam em comum aquelas qualidades medíocres que todos possuem. Nas massas, é a estupidez e não a inteligência que se acumula” (p. 33).
Este excerto ilustra o tom de grande parte da obra. Reitera-se, por isso, a necessidade de enquadrar o texto ao contexto sociocultural de então.
É de reforçar, porém, que algumas das teorias formuladas pelo autor continuam a ser um recurso para a compreensão da temática, em particular a teoria do contágio: “O contágio é tão poderoso que impõe às pessoas não apenas certas opiniões, mas também certas formas de sentir (…) É sobretudo pelo contágio, nunca pelo raciocínio, que se propagam as opiniões e as crenças das massas” (p. 107).
Este mecanismo, complementado pela afirmação e repetição é, para Le Bon, o meio de acção dos líderes, que sabendo do efeito do anonimato do indivíduo quando inserido na multidão, encontram aqui a estratégia de influência hipnótica. Isto, porque como observou Le Bon, o indivíduo perde-se, para formar a tal unidade mental das massas.
Ainda que os termos e expressões possam ferir susceptibilidades actuais, esta obra é uma ferramenta deveras interessante para compreender o efeito da publicidade (quer comercial, quer de propaganda) que actua por intermédio da afirmação, repetição e contágio. O que tem como consequência que a multidão assuma vida própria que, com o exagero dos sentimentos e emoções que lhe é característico, induza à irracionalidade – outro caractere particular das massas.
Esta recensão foi publicada no Jornal Página 1.