Em cada um dos contos desta obra, publicada em Portugal pela Cavalo de Ferro, o seu objetivo é alcançado: mais do que entreter, Olga Tokarczuk provoca o leitor, convocando-o a reflectir sobre alguns dos temas e questões prementes da humanidade ou da sua ausência.
A tensão é permanente. De forma latente, o leitor é quase obrigado a posicionar-se (ou, pelo menos, a pensar) em face de determinadas situações e dilemas éticos, nomeadamente, em relação à necessidade urgente de se proteger o que ainda resta do Planeta Terra.
Numa das histórias, As crianças verdes, a natureza é descrita como “um grande nada”. Mas não apenas. Ainda no mesmo conto, o narrador, ao reflectir sobre os acontecimentos que viveu enquanto médico de Sua Majestade em 1656, observa que uma das grandes causas da guerra é a religião, porque esta “divide mais do que une, o que não é difícil de admitir, tendo em conta a quantidade de cadáveres resultantes de motivos religiosos, incluindo as guerras hoje em dia travadas” (p. 24).
Em Conservas, a autora concede um certo apaziguamento ao castigar um filho pelo seu “pecado” da preguiça: a mãe deixa-lhe uma série de frascos de conserva, preparados enquanto ele se dedicava “à sua ocupação preferida: esvaziar latas de cerveja sucessivas e seguir dois grupos de homens, que (…) corriam atrás de uma bola…” (p. 42).
A verossimilhança de Uma história verdadeira é angustiante pelo modo como a autora trata a perda de identidade, a qual se constrói por intermédio de uma série de símbolos que distinguem os seres humanos uns dos outros. Num país estrangeiro, um professor perde a sua dignidade, ao ser confundido com um assassino, sem ter como provar o contrário. Ao perder os documentos, a roupa e o seu estatuto e papel, veiculados por essas mesmas garantias simbólicas fica sem chão. E se fosse o leitor? – a questão que nos inquieta. Uma história verdadeira também nos remete para a indiferença gritante e galopante ante a miséria dos outros.
O insólito verosímil perpassa outros contos que nos conduzem pela ficção científica, a distopia e a fantasia. As realidades fragmentadas descrevem-nos a crescente desumanização e a busca pela eternidade, como acontece nos contos A montanha de Todos-os-Santos e Calendário dos feriados humanos.
As fronteiras entre a cultura mais ancestral e a de um futuro de ficção científica esbatem-se, dando origem a catástrofes bizarras que procuram dar resposta a uma das grandes questões da humanidade: Para onde vamos?
Esta recensão foi publicada no Jornal Página 1.